Fábrica de loucos
Num
certo sábado, onze da manhã, Lúcia descia a avenida pequena
da cidade, desviando olhares de réstias muito quentes de fins de primavera
no capô do carro, ia à casa da mãe pegar algum objeto esquecido
de véspera, viu Esther na calçada em sentido contrário.
Muito amigas. Trabalharam juntas por anos, agora viam-se de passagem, como desta,
ou no supermercado, talvez nalguma noite de sábado. Lúcia levantou
o quebra-sol do pára-brisa olhos miúdos, em banguela na descida.
Sua munheca firme no cumprimento à amiga, coisa rotineira um aceno. Peito
colado no volante, e Esther não viu.
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Maneco Afonso criava pombos. Não eram dos correio, eram pombos desorientados
mesmo daqueles de igreja, apócrifos em gaiolas num barracão no
quintal. Ele mantinha a rotina de cada sábado comprar milho em espigas
no armazém da rua de baixo do Quintino. Pombos, milho, pito do Maneco,
palha, sabugos, garrafão. Num certo sábado, era inverno não
confundir, Quintino mandou essa: Seu Maneco, não tem milho. Entresafra
coisa e tal, agora só milho saquinho e de pipoca. Maneco Afonso de ombros,
Êta vida!
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Chamavam de Negão ele regozijava, sua mãe foi uma cadela que dormiu
na sacristia do padre Amâncio até o fim da vida. Padre Amâncio
cuidou da gravidez e do parto, enterrou seus três irmãos no quintal
da igreja, mas não podia ficar com ele, já estava velho e reclamavam
do Negão ali na santa casa. Negão foi pra rua, andarilhava por
toda a cidade, sempre recebendo afeto e restos de comida, até passavam
a mão nas suas orelhas. Era onipresente em muitos lugares estratégicos.
O bar do João, armazém do Quintino, fim de missa, a praça.
Tinha sarna, mas não ligava: Coçar é essencial a cachorros,
auto-afirmava-se. Num... outro sábado, as coisas nessas cidades do interior
são meio monótonas, levou um teco de cachorro-quente no focinho,
sempre adorara isso. Mas sobrancelhas em riste: embrulhou-se-lhe o estômago:
Salsicha cortada ao meio com mostarda, pão molhado... ai.
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Tamborilava na mesa de alguém na calçada dum sábado à
noite, como todas as noites, todas as mesas, e mandava: Eicucu cucucu! Era o
Sempre Livre, o bebum da cidade, cuicando sua cuíca bucal e pedindo samba
e cerveja às mesas. Todo mundo sabia, ria e negava. Mas naquele sábado,
Estér na mesa mandou o Sempre Livre trabalhar, vagabundo. Ele calou a
cuíca, olhou sério, vermelho sumiu da cidade. Foi absorvido pela
liberdade de um momento inédito, chamou-se então Lucas. Hoje,
Lucas vende chapéus na Praia Grande.
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Negão desiludiu na porta grande da igreja. Ali está até
hoje sarnando-se, cabeça pra cá comida que o padre dava, cabeça
pra lá água que o padre punha. Aperta pra cá que hoje é
missa, práli que alguém casa, mas já rareando esses incômodos.
Pouca gente casava e missa só dia santo. Padre Amâncio doeu coração
pela mãe do Negão, não olhava fixo em mais nada, alheio
à batina, genuflexório tinha rotina desde então. Cartas
do bispo amontoam-se da mesa, paróquia deserdada. Também ninguém
nem vai, só cultos internos agora nas casas da cidade. Água benta
estragou com sal.
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Quintino come pipoca. E tudo mais do armazém, fechado. Nem vê o
livro das pinduras de pé dependurado no prego do balcão. Abateu-se
nele algo morto, só gosta agora da cor do latão da porta à
básculo da quitanda por dentro, e chora. Pelos pombos, pena. Do Maneco
Afonso sem espiga, que soltaram-se das gaiolas, mas ainda lá, presos
libertos, ou vice-versa com as portinholas abertas. O dono dá restos
de comida, arroz feijão e imita seus ronronares no quintal sem fumar.
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Lúcia mora agora com a mãe esquecida da véspera. Nunca
passa um dia sem lembrar de Esther, Será que ela não viu?
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Ela subia a avenida da cidade pequena pisa-não-pisa com os buracos da
calçada. Estava quente de sol metal, quando viu a réstia do carro
da Lúcia que passava pelo seu ombro e não a viu, tropeçou.
Esther se virou para espiar se ainda restava-lhe ao menos um retrovisor, mas
a amiga cabeça baixa na banguela da descida. Nunca mais saiu nos sábados,
ou em outro dia de primavera, ou em nunca mais. Como pôde aquela zinha!,
mastiga agora no sofá.