VITRINE

 

"Maldito cachorro."

São duas da manhã e só eu não consigo dormir por causa desse. "Dia de merda." Ao acordar pela manhã a gente nunca espera esse vá ser um.

Os dias foram passando em fast-foward e ele continuava sentado no final da cama olhando praquela não-parede. Estar de frente pra todo mundo numa grande vitrine, exposto aos maníacos voyeristas como a carcaça de um animal recém morto. Se sentia morto, então tentava dormir. Ao recostar sobre o travesseiro o cansaço fazia com que seu coração batesse uma vez solitária a cada minuto. Queria apagar as lembranças. Queria deixar de existir.
A luz entra impiedosa pela janela gigante, a grande parede que não está lá. São seis horas da manhã e ele ainda não dormiu. Começa a orquestra de motores e freios, buzinas e ambulantes. Aquela música que é a única que tem tocado esses últimos meses. Há um radio sim, quebrado, em algum lugar embaixo da cama. E também velas. Mas quem precisa delas? Se essa cidade é como uma fogueira. E as pessoas estão lá fora, fazendo seu serviço: manter a fogueira acesa. Ele, se esgotou.
Queimou até só restarem as cinzas.
Nosso homem cinza.

Que pretende esse homem cinza. Inerte, que trama seria? Assim imóvel, que conflito colocaria esse homem em movimento?

"Que eh isso?!? Um pássaro? E que pancada! Pobre diabo filho da puta: agora tem sangue e penas na janela."

Ele sai e volta com um pano e um borrifador. Se torce para o lado de fora do edifício mas não consegue alcançar. Não adianta... vai ter que sair. Do lado externo se projeta uma laje de concreto de pouco mais de metro e meio a partir da borda da janela. Ele se senta na janela e com um movimento pouco ágil consegue passar sobre o vão. Engatinhando ele chega até a a janela do meio. Puxa o pano e o borrifador. Ele espirra a água na janela e em seguida passa o pano. Há uma sujeira pouca, mas não pode permitir aquilo alí. Todos os dias ele olha por aquela janela e eles olham pra ele por ela. Não pode permitir que aquela mancha de sangue e pena façam parte da imagem que fazem dele. Espirra mais uma vez. E outra. Pronto. Agora está satisfeito. Sua janela está limpa. Tem orgulho de si. Ao voltar para dentro ele pára de frente ao lugar da janela que a pouco limpara.

"Sim, está bem limpa, e vocês podem continuar a olhar pra mim."

E aquilo é o que ele fazia. Ficava lá. Vendo e sendo visto por ninguém.