A Farpa
Um
cavaco; filho do atrito. Uma nesga de pau; filha de podre. Aí ovulou
mais um espírito atormentado; este, que agora renasce literado. João.
Até aqui, não merecia. Ainda não produzira alcalóides,
hormônios, enzimas daquelas que alimentam espaços entre palavras.
Até aqui, só leveza leve, beleza leve, pureza leve, natureza natural,
bonita e pura. Que não costumam render literaturas.
Mas a farpa.
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João mantinha vida fácil. Daquelas facilidades de que carecem
os desiludidos. Vinha petecando de leve alguma felicidade, se isto é
palavra que se use. Trinta e dois anos, casado sem amor, ainda amuando; empregado
sem dom, ainda domando; dois filhos sem paternidade. Comia rodelas de batata
frita com TV, sustentando suspiros, porque sem amargura, adorando quedas de
pescoço dos cochilos, porque nunca insone. Beijava a mulher na testa,
os filhos nem; usava canetas até o fim, não arrotava.
Nesta tarde, acordou para o conto: percebeu a pequena queloide na lateral do
dedo anular direito. Cicatriz minúscula; dos treze anos, concentrou lembrança.
O batente do banheiro: passava a mão correndo, tangenciando a saída,
toda vez; naquela, lascou-se a lasca no dedo, picada fugaz, como a lambida,
e dezenove anos...
João, nesta tarde, morreu sua pureza. À luz um personagem. Mais
um batman se carcomendo em devaneio.
Primeira manhã de sua vida, ralhou com a mulher pela missa na TV, domingo.
Estalou dentes de ódio, depois da mosca tomada com café. Porém,
só não poupou a si da pergunta que lhe oxidava as têmporas
- palavras bem marcadas, como acompanhadas cada uma de uma abaixada ríspida
de cabeça, de pisões silábicos enfatizando-as: Eu-Não-Dei-Nunca-A-Menor-Importância-Àquela-Farpa-Àquela-Porta-Àquela-Mão-Àquele-Banheiro.
Aquilo-Não-Marcou-Minha-Vida. Porquê?!
Pronto, tá lá uma alma estendida no vão. No vão
da porta do banheiro, vão do dedo de treze anos. Enfim, o vão;
da vida, do João. O vão do verbo.
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Na página, João poderia acabar seu idílio vagando depósitos
de entulho, demente, buscando o batente. Ou o contista jogaria trocadilhos do
anular do dedo com o da vida, com elos partidos dalguma corrente psicológica;
ou do batente com o trabalho. Talvez aludir a arquétipos de filho, ligando
infância a paternidade; de casa, banheiro familiar: desarranjo doméstico.
Sangue, mão, Freud, pós-modernidade, andropausa... Que tal enfoque
fantástico, dadaísta, metafísico ou genético?
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Por favor, olhe suas mãos.