TUDO COMO TEM QUE SER

 

Tudo como tem que ser.

Eu descrevo você e você me descreve.
Ele ainda olhava pra cidade.
Sentado sobre seu colchão deitado no chão. Pouca mobilia. Pouco espaço dentro e uma imensidão do lado de fora. Esperava.

No elevador, detestava encontrar pessoas. Ficar junto com elas tão perto era estranho e em sua ansiedade fazia com que o tempo se dilatasse em infinitos minutos. Naquele dia encontrou uma garota no elevador.
- Você é o Marcos, não é?
Ele balançou a cabeça ainda olhando pra baixo. Tem um charuto entre os dedos da mão.
-Não.
-Você é do 52 - ela afirmava isso como se de fato ele não soubesse quem era; - Eu conheço todo mundo. Eu fiz um abaixo-assinado. Conheço todo mundo. Você não é o Marcos? Perguntou de maneira ainda afirmativa.
Ele odeia abaixo assinados. Para ele é pura demagogia colocar seu nome em um papel e achar que basta para mudar alguma coisa. A não ser que você esteja colocando seu nome num alistamento militar de guerrilha em algum país obscuro tomado por todo tipo de desgraça, nas mãos de um governo facista de merda.
-Não. Eu sou o Carlos, do 51.
-Ah.
A porta finalmente se abriu. Ele se apressou em sair, mas ainda não era seu andar. Era mais uma daquelas velhas com o couro cabeludo destruido de tanta tintura e poucos fios de cabelo em alguma cor sobrenatural.
Ele odiava elevadores.

Carlos entra numa loja de sofás. Conversa com os vendedores. Pergunta preços. O som das ruas é alto e não se pode ouvir uma palavra do que dizem. Ele vê com o vendedor alguns modelos, testa, senta, discute. Entra até o fundo da loja.
Ele poderia ver mais lojas. Poderia visitar milhares de outros vendedores de sofás. Poderia pechinchar. Poderia agir como qualquer pessoa quando pretende gastar suas economias no primeiro e unico objeto de mobilia que vai habitar com ele o apartamento.
Mas Carlos era contra. Lutara na Nicaragua contra os Contras, e fazia questão de frizar sempre que ficava bêbado "...EU lutei contra os Contras" sem perceber que aquilo não fazia dele um sandinista, fazia dele um cara "a favor" dos "a favor".
Ele sai da loja com um papel na mão. E volta para sua casa.

Carlos esta sentado na na sala de seu apartamento. Olha para o vazio. Ele não conversa nunca. Não quer ficar perto.
A campaínha toca e ele olha pra porta. Ali, atras dele, a poucos metros. Por algum tempo ele pensa em não atender. Pode ser algum abaixo-assinado.
Mas ele sabe o que é. Esteve esperando por algum tempo e agora aquele cômodo vazio vai passar a ser alguma coisa.
Dois homens entram carregando um sofá grande e branco. Eles retiram os sacos plásticos que o envolvem, retiram os sacos plasticos das almofadas e fazem Carlos assinar algum papel. Ele senta em seu sofá branco olhando para o infinito lá fora. Seu primeiro móvel. Um objeto de existência inesgotável que vai acompanhá-lo por toda vida. Carlos Tem agora outro papel nas mãos.

Carlos era em vagabundo, vivia de sua aposentadoria e sua ex-mulher já o havia mandado pra cadeia umas cinco vezes por não pagar a pensão. Na verdade ela também era uma vagabunda e quando ficava sem grana, apertava Carlos mandando alguem lhe dar uma surra. Ele ja estava velho e não era o mesmo guerrilheiro dos tempos da ditadura, mas aguentava bem umas porradas.
Ele esta deitado em seu sofá branco. Dormiu abraçado á uma garrafa de Contini Roso e todo o conteúdo que ele não bebeu estava agora esparramado sobre seu peito e havia escorrido formando uma poça entre ele e o sofá. Ele acorda devagar e não se percebe do tamanho da catástrofe. Ele vira o rosto e sente algo molhado com cheiro de rejeição de ressaca. A repulsa faz ele levantar o corpo e se sentar no sofá. A garrafa cai no chão.
-Oh, merda! - ele se levanta praguejando e o alcool acumulado atinge sua cabeça como um raio.
De óculos escuros ele agora tem um pano nas mãos e um balde com água e sabão. Ele esfrega o sofá numa velocidade entediante.
Ele sabe que aquela mancha vai ficar ali pelo tempo que durar o sofá. E isso vai ser por muito tempo. Ele não podia acreditar. A unica coisa que ele não precisava mais se preocupar virara da noite pro dia algo que ele não podia suportar. Tinha que fazer alguma coisa.

Carlos está de óculos escuros, com uma lista telefonica junto a um orelhão. Ele tem o dedo fixo em um ponto do papel e disca numero a numero checando duas vezes no papel e no discador. Podemos ver seu prédio ao fundo. O telefone atende, o barulha na rua é insuportavel. Onibus, motos, pessoas, buzinas. Sua conversa termina. Ele volta para o prédio.

Vendedores em geral não eram pessoas as quais Carlos dava alguma importância. Mas esse ele mesmo fora obrigado a chamar. O pequeno homenzinho fala muito. Tem muitas informações e mostra uma variedade infinita de tecidos. Ele odeia vendedores. Mas esse não era um vendedor. Mas mesmo assim ele não gostava.
O homenzinho continuava explicando as diferencas entre fibras sintéticas e orgânicas, e cores e tramas. Carlos tinha seus olhos perdidos, olhava longe.
-Esse é o mais indicado pro senhor, Sr Carlos. Tecido de teflon de alta resistência, totalmente á prova de liquidos, garantido por tres anos! e não sai mais caro que o chenile tradicional, não. Da pra pagar em quatro vezes e no final eu ainda faço umas almofadas se sobrar tecido.
Carlos olha pra ele e em instantes já estão dois carregadores levando o sofá pra fora.
-Não se preocupe Sr. Carlos que o serviço é de primeira. Em duas semans o sofa ta de volta e o senhor nem vai perceber.
Os homens saem. No apartamento, vazio de novo, apenas o colchão e Carlos tem outro papel na mão.

Ele olha pela janela a cidade a noite. Vale a pena ser insignificante a noite. As estrelas também são insignificantes ao lado das outras.
Toca sua campainha. A garota do elevador. Carlos desprezava os idealistas como desprezava os vendedores.
-Oi, você que é o Marcos do 52?
- Não, eu sou o Carlos do 51. E isso ele diz de maneira aspera e aponta o numero na porta como quem diz "veja sua garota estúpida o número 51 aqui em cima".
-Ah desculpa, mas é tanta gente nesse prédio, né! Não dá pra conhecer todo mundo. Eu sou da associação dos moradores e a gente está colhendo assinaturas pra pra fazer umas mudanças...
-Eu não participo de abaixo-assinados.
- ...Bom, como você sabe, eles vão gastar a verba do condominio pra pintar a fachada e nós achamos que isso é superficial e desnecessário. O abaixo-assinado é pra fazer uma reforma nos elevadores e no sistema de segurança e incêndio. A gente quer que o dinheiro seja investido em coisas importantes, não com supérfluos. A administração...
- Eu não participo de abaixo-assinados.
-Mas é importante, ou eles vão continuar mudando por fora e aqui dentro fica a mesma coisa. Se a gente não se unir...
-Olha garota, eu não quero unir e eu não participo de abaixo-assinados.
Ele fecha a porta e ainda ouve ela falando la fora. Idealistas. Eles acham que é fácil. "Vamos mudar as coisas por dentro". Eles não sabem que o mundo é uma cobra que troca de pele e por dentro, continua cobra mostrando os dentes.
Ele volta pra janela, fuma um charuto.

Seu sofá chegou. Sr. Carlos está feliz. Sua sala está completa de novo.
Um novo sofá por fora, mas que ainda é o mesmo por dentro.
Tudo como tem que ser.